Idade Contemporânea Holodomor — a Grande Fome da Ucrânia Ao dar início à modernização da União Soviética, Stalin deu cabo ao que ficaria conhecido como Holodomor, onde milhões morreram de fome na década de 1930. Idade Contemporânea • Massacres e Genocídios • Períodos Autor: Eudes Bezerra Matéria criada em 19 junho 2015 Atualizada em 3 junho 2017 8 minutos Criança desnutrida durante o Holodomor, 1933. Créditos: Gareth Richard Vaughan Jones. Ao dar início à modernização da rústica União Soviética, Josef Stalin também iniciou o que ficaria controversamente conhecido como Holodomor. Enquanto a União Soviética exportava alimento e impunha forte crescimento industrial, dezenas de milhões de ucranianos passavam fome e o canibalismo se tornou prática usual no início da difícil década de 1930. Milhões pereceram ante a fome. Também chamado de Holocausto Ucraniano ou de A Grande Fome da Ucrânia, o Holodomor (“fome-extermínio” ou “assassinato pela fome”) teria ocorrido entre os anos de 1932 e 1933, tomando o último suspiro de vida de milhões na Ucrânia e no Kuban, ambas as regiões de etnia ucraniana. Contudo, há relativa divergência, sobretudo política, acerca do imenso número de mortos ser ou não decorrente de uma política genocida perpetrada pelo Estado Soviético. Ainda assim, o artigo em tela se baseou na corrente majoritária: houve genocídio. 1. Antecedentes Em meados de 1928, o então líder soviético, Josef Stalin, sabendo da fragilidade da União Soviética perante as beligerantes potências estrangeiras, deu início a uma rápida e extraordinária modernização nacional mediante a execução do Primeiro Plano Quinquenal criado pelo Comitê Estatal de Planejamento (GOSPLAN), que dedicou prioridade às grandes obras de infraestrutura e à indústria pesada (siderurgia, maquinaria, etc.). Nas extensas planícies do seu território, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) executou um radical projeto de coletivização da agricultura privada, que acabaria por desencadear uma grave crise política interna. A coletivização teria alcançado a impressionante soma de 25 milhões de lares e transformado a classe “abastada”, os kulaks, em sem-teto e impedidos de receber ajuda alheia. O líder soviético, Josef Stálin: “Liquidar os kulaks como classe!”. (CAWTHORNE, 2012, p. 123) Créditos: autoria desconhecida. O processo de coletivização demandava, para seu sucesso, a exclusão dos agricultores mais bem-sucedidos. No dia 3 de janeiro de 1930, Stalin decretou os kulaks como inimigos do Estado e, dispondo sobre as “medidas para eliminação dos pequenos agricultores kulaks nos distritos de ampla coletivização”, legalmente acabou por transformar a classe em inimiga nacional, pois a enxergava como uma possível fonte de insurreição futura. Estima-se que aproximadamente 10 milhões de kulaks foram desapossados de seu patrimônio e transformados em trabalhadores avulsos na engrenagem soviética. Dessa forma, toda a União Soviética acabou sendo direcionada ao plano de cinco anos da GOSPLAN e as ações em face dos kulaks logo trouxeram grandes consequências: desapropriações, prisões, deportações e assassinatos. Muitos fugiram para Polônia e países próximos, outros abateram e defumaram seus animais para consumo próprio em vez de entregá-los ao Estado. Stalin, por sua vez, retaliou com violência e a polícia secreta soviética deu início às prisões em massa dos que resistiam à coletivização, deportando-os aos campos da Administração Geral dos Campos de Trabalho Correcional e Colônias, os conhecidos — e temidos — GULAGs. Na colheita de 1930, dos três grandes centros produtores de trigo da União Soviética (Sibéria Ocidental, Cazaquistão e Ucrânia), somente a Ucrânia alçou bons resultados correspondendo a aproximadamente um terço de todo o trigo produzido na gigantesca URSS. Todavia, teve quase metade de sua produção confiscada pelo Estado, o que preocupou as autoridades ucranianas pela necessidade de alimentar sua população e garantir os grãos essenciais à próxima semeadura. Ainda, a radical coletivização agrícola e a perseguição dos kulaks já teriam dado causa a elevados danos às regiões de etnia ucraniana (Ucrânia e Kuban, esta ao norte da região do Cáucaso). Outrossim, por causa das colheitas medíocres realizadas em outras regiões, as regiões ucranianas sofreram exigências específicas para o cumprimento de suas quotas na entrega. Stalin acreditava que estas regiões estavam desviando ou estocando grãos em vez de entregá-los ao Estado, o que ensejou maior perseguição estatal e consequentes negações de pedidos de ajuda. Outro fator que teria alicerçado a forte política stalinista repousa no argumento de que as regiões de etnia ucraniana eram vistas como o elo político mais frágil e conturbado, mas essencial à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Assim sendo, acreditava-se que tais regiões deveriam sofrer certo arrocho para que permanecessem vinculadas à “federação” soviética. A fome que se abateria sobre a Ucrânia soviética foi prenunciada em 1931, quando “o fracasso da primeira colheita da coletivização foi evidente. As razões eram várias: o clima não ajudou; as pragas eram um problema; a tração animal era limitada porque os camponeses haviam vendido ou eliminado seus rebanhos; a produção de tratores era muito inferior ao previsto; os melhores agricultores [kulaks] tinham sido deportados; a semeadura e a colheita foram desestabilizadas pela coletivização; e os camponeses que tinham perdido suas terras não viam razão para se esforçar demais no trabalho”. (SNYDER, 2012, p. 61, acréscimo nosso) Crianças desnutridas durante a Grande Fome da Ucrânia. Créditos: autoria desconhecida. 2. O Holodomor No fim do primeiro semestre de 1932, a escassez de comida se impunha, mas, mesmo com graves advertências, a quota de grãos estabelecida pela GOSPLAN sofreu nova elevação e as negações de ajuda por parte do Partido Comunista se intensificaram uma vez mais. No dia 12 de junho de 1932, apesar dos protestos, Viatcheslav Molotov, membro da cúpula soviética, demonstrou a determinação do Estado no êxito do plano quinquenal: Mesmo que hoje confrontados com o espectro da fome, principalmente nas zonas produtoras de grãos, os planos de coleta devem ser cumpridos a qualquer custo”. (IVNITSKII, apud: WERTH, 2015, s/p,) No mês seguinte, na primeira metade do mês de julho, ocorreu a Terceira Conferência do Partido da Ucrânia e, com debates acalorados, ficou evidenciado que a nova cota não seria atingida, que seria irreal, um desvario de Moscou. Posteriormente, as colheitas da Ucrânia e do Kuban consubstanciaram o anteriormente dito na conferência, sendo insatisfatórias e fazendo a fome recair sobre a população – o Holodomor teve início. As coletas de setembro e outubro de 1932 foram catastróficas. Em setembro, apenas 32 por cento da meta mensal foi alcançado na Ucrânia e 28 por cento no norte do Cáucaso [em Kuban]. Em outubro, as entregas encolheram de novo: Em 25 de outubro, apenas 22 por cento da quotização obrigatória fixada para esse mês foi coletada na Ucrânia, e 18 por cento no Norte do Cáucaso” (SHAPOVAL; VASILEV, apud: WERTH, 2015, s/p, acréscimo nosso). No final de 1932 e início de 1933, em meio à grande fome, miséria e mortes, camponeses e kulaks deram início a um processo de sabotagem na linha de produção agrícola, que acarretou severa punição por parte do Estado. A resistência ucraniana às ordens da capital soviética, Moscou, tornou-se “armada”, o que acabou por ser considerada uma contrarrevolução e, assim, militarmente acabou sendo combatida e neutralizada. Estima-se que aproximadamente 100 mil pessoas tenham sido presas e enviadas aos GULAGs. Em 1933, entre os meses de fevereiro e julho, a fome chegou ao auge e uma arrebatadora onda de morte por inanição se alastrou como uma epidemia, obrigando muitos a praticarem canibalismo. De acordo com relatório trocado entre membros da polícia secreta soviética: Pode-se mesmo dizer que o canibalismo tornou-se um hábito. Há alguns que eram suspeitos de canibalismo no ano passado e agora estão regredindo novamente, matando crianças, conhecidos e até mesmo estranhos na rua. Nas aldeias que são afetadas por canibalismo, a cada dia que passa fortalece a crença das pessoas de que é aceitável comer carne humana. Esta ideia é particularmente difundida entre as crianças.” (WERTH, 2015, s/p) Matéria do Daily Express, de 1934, relatando a terrível situação dos atingidos pelo Holodomor, indicando a morte por inanição de seis milhões de camponeses ucranianos. Créditos: autoria desconhecida. Muitos camponeses conseguiram alcançar a capital uraniana, Carcóvia, no entanto, sem conseguir alimento para sobreviver, 1933. Créditos: Alexander Wienerberger. Mais uma jovem vítima do Holodomor, 1933. Créditos: Alexander Wienerberger. Em um cenário similar aos campos de concentração nazistas, tornou-se comum ver cadáveres nas ruas, parques e linhas férreas. Com o grande número de mortos — e o consequente esgotamento de jazigos —, praças e jardins começaram a servir de cemitérios. Placas foram inutilmente postas pelo governo proibindo a prática ilegal de enterro. Os números de mortes divergem em grande escala, mas se mostram severos em quaisquer: estima-se que entre 3 e 7 milhões de ucranianos possam ter morrido por inanição, além de outros 3 milhões em outras áreas da então União Soviética, que negou e tramou para esconder a terrível mortandade até o ano de 1987, quando a reconheceu e abriu seus arquivos secretos. Todavia, ao que parece, sem se referir ao tema como genocídio ou afim. O Plano Quinquenal de Stalin, concluído em 1932, trouxe desenvolvimento industrial à custa da miséria do povo. As mortes de camponeses ao longo das vias férreas eram uma evidência assustadora desses novos contrastes. Em toda Ucrânia soviética, os passageiros dos trens tomavam involuntariamente parte desses terríveis acidentes. Os camponeses famintos seguiam para as cidades ao longo das linhas de trem, alguns desmaiavam de fraqueza sobre os trilhos.” (SNYDER, 2012, p. 49-50) Transeuntes observam vítima do Holodomor, 1933. Créditos: Alexander Wienerberger. O corpo de uma vítima do Holodomor em via pública da cidade ucraniana de Carcóvia, a então capital da Ucrânia, 1932. Créditos: Alexander Wienerberger. 3. Reconhecimento atual Em meados de 1998, celebrou-se o dia da Memória das Vítimas da Fome e da Repressão Política, ocorrido anualmente no quarto sábado do mês de novembro. Doravante, o parlamento ucraniano ratificou ato apresentando ao mundo o Holodomor como genocídio. Atualmente, o Holodomor, ou A Grande Fome da Ucrânia ou mesmo Holocausto Ucraniano, detém reconhecimento de países, como Argentina, Brasil, Canadá, Espanha, Estados Unidos da América, Itália, Polônia, Vaticano e tantos outros. Contudo, ainda existe grande indiferença ou rejeição ao tema, de modo que alguns dos países centrais na política internacional vêm se abstendo de comentários. Outros, como a Itália, promovem até debates acadêmicos acerca do controverso tema. Interessa também apontar que, na Internet, há um imenso número de registros fotográficos se referindo ao Holodomor, quando, na verdade, tratam-se de outros massacres e afins, tendo muitos ocorrido posteriormente (variando tanto no espaço quanto no tempo). Inobstante, A Grande Fome da Ucrânia carece de um razoável número de fotografias, sendo a maioria o resultado do fruto da teimosia de observadores estrangeiros, que burlaram o sistema de repressão soviético e propagaram as atrocidades da política stalinista ao mundo. O aniversário de 77 anos da Fome Genocida, Kiev, Ucrânia, 28 de novembro de 2010. Créditos: Vladimir Sindeyev / ITAR-TASS Foto / Corbis, ID: 42-26798206. Em Berlim, na Alemanha, ucranianos e alemães lembram as vítimas do Holodomor, 22 de novembro de 2014. Os Ucranianos e alemães acenderam velas e carregaram pães em frente ao Portão de Brandenburgo, para lembrar os milhões de mortos durante o Holodomor. Créditos: Thorsten Strasas / Demotix / Corbis, ID: 42-64416831. REFERÊNCIAS: BLAINEY, Geoffrey. Uma Breve História do Século XX. São Paulo, SP: Fundamento, 2008. CAWTHORNE, Nigel. Os Crimes de Stalin: a trajetória assassina do Czar vermelho. trad. Tatiana Malheiro. São Paulo: Madras, 2012. DIOGO, José-Manuel. As grandes agências secretas: os segredos, os êxitos e os fracassos dos serviços secretos que marcaram a história. São Paulo: Via Leitura, 2013. SÉMELIN, Jacques. Purificar e Destruir: Usos políticos dos massacres e genocídios. trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. SNYDER, Timothy. Terras de Sangue – A Europa entre Hitler e Stalin. trad. Mauro de Abreu Pinheiro. Rio de Janeiro: Record, 2012. VINCENTINO, Cláudio; DORIGO, Gianpaolo. História Geral e do Brasil. São Paulo: Scipione, 2002. WERTH, Nicolas. The Great Ukrainian Famine of 1932-33, Online Encyclopedia of Mass Violence [online]. Acesso em: 3 jun. 2015. WHITE, Matthew. O grande livro das coisas horríveis: a crônica definitiva das cem piores atrocidades da história. trad. Sergio Moraes Rego. Rio de Janeiro: Rocco, 2013. IMAGEM(NS): Buscou-se informações para creditar a(s) imagem(ns), contudo, nada foi encontrado. Caso saiba, por gentileza, entrar em contato: contato@incrivelhistoria.com.br Eudes Bezerra37 anos, recifense, graduado em Direito e História. Diligencia pesquisas especialmente sobre Antiguidade, História Militar, Crime Organizado e Sistema Penitenciário. Gosta de ler, escrever, planejar e executar o que planeja. Tags usadas: crimes contra a humanidade século xx Deixe um comentário Cancelar respostaO seu endereço de e-mail não será publicado. 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