Idade Moderna

Os sacrifícios astecas

No alto dos templos-pirâmides, toda a Tenochtitlán tomava parte como testemunha nos sacrifícios religiosos que vitimavam homens, mulheres e até crianças.


ilustração sacrifício asteca
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Autor: Eudes Bezerra
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ilustração sobre um dos sacrifícios astecas
O principal dos sacrifícios astecas em homenagem ao deus Sol. Créditos: ©Bettmann/Corbis, ID SF4794G.

Costumeiramente considerado um dos povos mais sanguinários que se tem notícia, o Império Asteca realizou sacrifícios religiosos como verdadeiras megaproduções a partir do alto dos seus templos-pirâmides, onde toda a cidade parecia tomar parte como testemunha. Homens, mulheres e até crianças eram usados nos rituais que poderiam durar dias e se destinavam a saciar a sede dos deuses.

O relato e trauma espanhol

Em meados de 1520, logo após ter tomado o controle de Tenochtitlán, a capital do império asteca, o espanhol Hernán Cortez se viu obrigado a deixar tudo para trás e fugir em meio às escaramuças dos astecas que haviam se rebelado contra o domínio espanhol.

Durante a fuga, centenas de conquistadores (soldados espanhóis) e milhares de aliados indígenas pereceram. Muitos outros foram capturados. No momento seguinte à fuga, enquanto os ameríndios comemoravam a vitória, os espanhóis remanescentes, incluindo o próprio Cortez, ficaram horrorizados ao ver seus colegas capturados serem ofertados aos deuses astecas, como se pode verificar no oportuno relato do conquistador Bernal Díaz:

Ouvia-se o sinistro bater dos tambores (…), de muitas outras conchas, cornetas de chifre e coisas como trombetas, e o som delas todas era aterrorizante, e nós todos olhávamos na direção da alta pirâmide… e vimos que nossos companheiros… estavam sendo carregados à força pelos degraus acima…

Nós os vimos colocar plumas na cabeça de muitos deles, e com coisas como leques as mãos eles os forçaram a dançar diante deles (…), e depois que haviam dançado, eles imediatamente os colocaram deitados de costas em pedras bem estreitas… e com algumas facas abriram seus peitos e tiraram seus corações palpitantes e os ofereceram a seus ídolos [os deuses].

Jogaram os corpos degraus abaixo, aos pontapés, e os carniceiros indígenas que esperavam embaixo cortaram seus braços e pernas, e arrancaram a pele dos rostos e a preparavam depois como couro de luvas, ainda com a barba… e a carne eles a comeram em chilmole [‘comida típica’]”. (DÍAZ, apud: WHITE, 2013, p. 201, acréscimo nosso)

Os sacrifícios astecas

O supracitado relato se refere ao ritual oferecido ao Deus Sol dos astecas, também sendo o mais famoso sacrifício. Sua origem buscaria assento no mito de que, em tempos imemoriais, o deus Huitzilopochtli teria ficado gravemente ferido após saltar sobre uma fogueira. As demais divindades do panteão asteca, para salvá-lo, alimentaram-no com o próprio sangue, de modo que o moribundo se recuperou e agraciou o mundo com luz.

Os súditos astecas, por sua vez, tratavam de oferecer diariamente sangue novo a Huitzilopochtli — o deus do Sol e da Guerra — para que no dia seguinte houvesse luz mais uma vez, e não trevas (escuridão). Isto é, tratar-se-ia ou de uma liturgia sagrada do sacrifício dos deuses ou apenas de sua mera continuação.

Dessa forma, todas as manhãs, ao menos um prisioneiro ou cativo era dopado e oferecido ao deus sol no alto de algum dos suntuosos templos de Tenochtitlán, para que toda a cidade pudesse vê-lo sangrar em homenagem aos seus deuses. Quatro sacerdotes inferiores seguravam o pobre-diabo por cada um dos membros, colocando-o deitado sobre uma mesa de pedra. O sacerdote superior proferia palavras “místicas” e, com lâmina ou equivalente, procedia-se ao corte da carne e à retirada do coração, que parece ter sido chamado de fruta ou flor de cactos.

Com o coração ainda pulsando em suas mãos, o sacerdote proferia novas preces e o ofertava ao astro-rei, o Sol, para que por mais 24 horas existisse luz sobre todo o império ameríndio. Posteriormente, o coração era incinerado ali mesmo e o corpo jogado templo abaixo para que outros servos o desmembrassem. A carne era feita a gosto e devorada em ritual antropofágico. O sangue era distribuído nos limites da cidade para afastar maus espíritos.

ilustração sacrifício asteca
Prisioneiros de guerra sendo sacrificados ao Deus Sol. Créditos: Registro asteca do século XVI (posterior a 1519). Biblioteca Nacional de Paris, França. The Bridgeman Art Library International.

Além do rito místico mais conhecido, diversos outros existiam e para as mais diferentes pessoas e divindades, como o “Esfolamento dos Homens” em honra ao deus Xipe Totec. Mulheres e até bebês também faziam parte das oferendas, sendo as primeiras usualmente mortas em homenagem à deusa-mãe Xilonen e as últimas a Tlaloc, o deus da chuva.

Uma testemunha espanhola deixou registrado que havia um homem chamado Tlacaelel, que já havia servido como assessor a três reis diferentes e possuía ânimo para inventar “sacrifícios infernais, cruéis e medonhos”, como se segue um exemplo:

Tlacaelel supervisionou a cerimônia para o rei Ahuitzol, em 1487, em que o Grande Templo foi novamente consagrado, e durante a qual vítimas sacrificiais foram dispostas em quatro colunas que se estendiam pelas pontes que ligavam as ilhas de Tenochtitlán. Foram necessárias quatro equipes de sacerdotes, durante quatro dias, para matar todos os prisioneiros, enquanto o sangue se acumulava em poças e manchava a base da pirâmide.” (WHITE, 2013, p. 203)

A estimativa de mortos para o supracitado sacrifício se situa entre 14 mil e 20 mil. Historiadores não atuais, todavia, acreditavam em aproximadamente 80 mil sacrificados.

maquete templo asteca
Maquete que reconstrói o Templo Maior de Tenochtitlán. Defronte, em formato circular, encontra-se o Templo de Quetzalcóatl. Créditos: Museu Nacional de Antropologia na Cidade do México, México.

Grande parte das pessoas que eram sacrificadas correspondia a prisioneiros e, embora exista imensa disparidade quanto aos reais números da população asteca, Tenochtitlán era uma das maiores cidades do planeta, senão a maior, e seu império se contava, demograficamente, em dezenas de milhões de súditos, o que favorecia os ritos proféticos de sua cultura.

Ainda visando a mesma finalidade, guerras também teriam sido financiadas para a captura em massa de índios inimigos. Uma curiosidade é que muitas vezes as lutas não envolviam armas letais, para que a “mercadoria” (ser humano) não sofresse avaria.

O porquê de se sacrificar seres humanos é outro ponto que não encontra mútua concordância, visto que muito se questiona por que sacrificar seres de sua própria espécie diariamente e não animais. Dentre as poucas teses protestadas, há a de que, tais quais os romanos para com seus gladiadores, os astecas, como sociedade amplamente guerreira, buscava o endurecimento de seus nacionais, para que novas guerras pudessem ser vislumbradas, financiadas e vencidas.

Entre outras suposições, há uma que apesar de grandemente rejeitada, indica que a ausência de animais de grande porte e pele saborosa na parte centro-sul do continente americano tenha contribuído, para o canibalismo como único modo de se assegurar fonte de energia regular.

Alguns relatos corriqueiros da época nos incitam para números estratosféricos, como os realizados por membros da comitiva de Hernán Cortez, que afirmam ter visto “prateleiras” com mais de 136 mil crânios em Tenochtitlán e outros 100 mil na cidade de Xocotlán. Contudo, não se conhecem os números de sacrificados, mas, anualmente, os mais convencionados se encontram entre 15 mil e 20 mil, o que indica, sem comprovação cabal, a execução de milhões no decorrer da história da sofisticada sociedade ameríndia.

REFERÊNCIAS:
CUMMINS, Joseph. As Maiores Guerras da História. trad. Vania Cury. Rio de Janeiro: Ediouro, 2012.
HARRIS, Marvin. El Reino Canibal. Acesso em: 26 jun. 2014.
MCLYNN, Frank. Heróis e Vilões. trad. Adriana Marcolini e Constantino Kouzmin-Korovaeff. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008.
PRIOLLI, Julia. Glória feita de sangue. Revista Aventuras na História. São Paulo: Abril, n. 74, p. 28-36, set., 2009.
VILAR, Leandro. Hernán Cortés e a conquista dos Astecas (1519-1521). Acesso em: 1º jul. 2014.
VINCENTINO, Cláudio; DORIGO, Gianpaolo. História Geral e do Brasil. São Paulo: Scipione, 2002.
WHITE, Matthew. O grande livro das coisas horríveis: a crônica definitiva das cem piores atrocidades da história. trad. Sergio Moraes Rego. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.
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Eudes Bezerra

37 anos, recifense, graduado em Direito e História. Diligencia pesquisas especialmente sobre Antiguidade, História Militar, Crime Organizado e Sistema Penitenciário. Gosta de ler, escrever, planejar e executar o que planeja.

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